Estreia da coluna – Uma dose de literatura
A coluna tem como propósito apresentar trechos de obras do amplo
universo literário, em diálogo com pesquisas históricas, sociológicas,
antropológicas e filosóficas, em que o futebol aparece como protagonista ou nas
entrelinhas da narrativa. Uma literatura que entende o futebol como microcosmo
das nossas contradições socioculturais.
Nessa estreia, a escritora Carola Saavedra nos brinda com parte de
um conto que mostra o lado melancólico de um pós-jogo repleto de expectativas.
Boa leitura à tod★s!
Reverso do jogo
por
Carola Saavedra*
Então acabou. Ele já imaginava.
Acabou. Todos foram embora e ele ficou ali, pensando em como aquilo podia ter
acontecido, pensando que a imaginação, por mais perfeita que seja, nunca
corresponde à realidade quando esta finalmente acontece. A realidade é sempre
algo irreal. A realidade é sempre algo desconhecido. Ele ficou, ali, sozinho,
naquele espaço enorme, depois da festa, depois da despedida, depois de tudo, o
espaço que fica quando a festa acaba e todos vão embora, ou mais desanimador
ainda, o espaço da festa que não acontece. A festa preparada que não acontece.
Os balões, as serpentinas, a mesa posta. A música que não tocou. Como uma
intenção, um gesto que é interrompido pela metade e fica apenas a imagem de um
esforço, de um movimento desajeitado. O abraço que não houve, o beijo que não
dera. O rosto ou os braços estendidos. O espaço vazio. Ficou ali pensando em
tudo o que havia imaginado e não aconteceria mais. A festa por festejar, a
celebração que não aconteceu. As expectativas perdendo lentamente a sua forma.
E ficou ele ali, sozinho naquele espaço enorme, maior ainda sem vozes, sem
festa, a música que não tocara, a foto que ninguém fizera, a lembrança que ele
não teria, aquele espaço.
Olhou em volta. Pouco a pouco todos
haviam ido embora. Uma caravana a arrastar-se silenciosa pela cidade. Ele ali
sentado, os olhos fixos no chão, num pedaço de jornal, num rabisco qualquer. Os
olhos fixos olhando sem ver. As pessoas se levantando, indo embora, enquanto
que ele ali, imóvel, como se ainda não tivesse certeza que acabara, como se
esperasse um engano, uma segunda chance. Só depois, quando tudo deixara de
acontecer é que se deu conta, ele ali sozinho e todo aquele espaço. O espaço
que antes lhe parecera tão compacto, tão vivo, agora era uma extensão desbotada
e interminável. E quanto mais aumentava aquela distância, mais insistente
parecia tornar-se o silêncio à sua volta. Onde antes havia vozes, gritos e
música, agora apenas o silêncio, esgarçando-se, tomando forma. Onde deveria
haver a festa, agora apenas aquele espaço e o silêncio e o tempo estancado.
Só muito depois, quando alguém
apareceu falando alto, gesticulando e dizendo alguma coisa que ele mal ouviu, é
que o tempo finalmente voltou a correr. E como se finalmente despertasse, se
levantou, passou a mão pelo rosto, pelos cabelos, como se os penteasse para
trás, dobrou o pedaço de pano que carregara com ele o dia inteiro, prendeu-o
debaixo do braço e foi embora.
SAAVEDRA, C. "Reverso do
jogo". In: RUFFATO, Luiz (Org.). Entre as quatro linhas - Contos
sobre futebol. São Paulo, editora DSOP, 2013.
*Carola Saavedra nasceu
em Santiago do Chile, em 1973, e mudou-se para o Brasil aos três anos de idade.
Também morou na Espanha, na França e na Alemanha, onde concluiu seu mestrado em
Comunicação. Entre seus livros destacam-se Toda terça (2007), Flores azuis (vencedor
do prêmio APCA de 2008), Paisagem com dromedário (2010) e o
volume de contos Do
lado de fora (2005). Atualmente, vive no Rio de
Janeiro (RJ) e simpatiza com o Botafogo.
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