terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Uma dose de literatura #1



Estreia da coluna – Uma dose de literatura 


A coluna tem como propósito apresentar trechos de obras do amplo universo literário, em diálogo com pesquisas históricas, sociológicas, antropológicas e filosóficas, em que o futebol aparece como protagonista ou nas entrelinhas da narrativa. Uma literatura que entende o futebol como microcosmo das nossas contradições socioculturais.

Nessa estreia, a escritora Carola Saavedra nos brinda com parte de um conto que mostra o lado melancólico de um pós-jogo repleto de expectativas. 

Boa leitura à tods!



Reverso do jogo
por Carola Saavedra*

Então acabou. Ele já imaginava. Acabou. Todos foram embora e ele ficou ali, pensando em como aquilo podia ter acontecido, pensando que a imaginação, por mais perfeita que seja, nunca corresponde à realidade quando esta finalmente acontece. A realidade é sempre algo irreal. A realidade é sempre algo desconhecido. Ele ficou, ali, sozinho, naquele espaço enorme, depois da festa, depois da despedida, depois de tudo, o espaço que fica quando a festa acaba e todos vão embora, ou mais desanimador ainda, o espaço da festa que não acontece. A festa preparada que não acontece. Os balões, as serpentinas, a mesa posta. A música que não tocou. Como uma intenção, um gesto que é interrompido pela metade e fica apenas a imagem de um esforço, de um movimento desajeitado. O abraço que não houve, o beijo que não dera. O rosto ou os braços estendidos. O espaço vazio. Ficou ali pensando em tudo o que havia imaginado e não aconteceria mais. A festa por festejar, a celebração que não aconteceu. As expectativas perdendo lentamente a sua forma. E ficou ele ali, sozinho naquele espaço enorme, maior ainda sem vozes, sem festa, a música que não tocara, a foto que ninguém fizera, a lembrança que ele não teria, aquele espaço. 

Olhou em volta. Pouco a pouco todos haviam ido embora. Uma caravana a arrastar-se silenciosa pela cidade. Ele ali sentado, os olhos fixos no chão, num pedaço de jornal, num rabisco qualquer. Os olhos fixos olhando sem ver. As pessoas se levantando, indo embora, enquanto que ele ali, imóvel, como se ainda não tivesse certeza que acabara, como se esperasse um engano, uma segunda chance. Só depois, quando tudo deixara de acontecer é que se deu conta, ele ali sozinho e todo aquele espaço. O espaço que antes lhe parecera tão compacto, tão vivo, agora era uma extensão desbotada e interminável. E quanto mais aumentava aquela distância, mais insistente parecia tornar-se o silêncio à sua volta. Onde antes havia vozes, gritos e música, agora apenas o silêncio, esgarçando-se, tomando forma. Onde deveria haver a festa, agora apenas aquele espaço e o silêncio e o tempo estancado.

Só muito depois, quando alguém apareceu falando alto, gesticulando e dizendo alguma coisa que ele mal ouviu, é que o tempo finalmente voltou a correr. E como se finalmente despertasse, se levantou, passou a mão pelo rosto, pelos cabelos, como se os penteasse para trás, dobrou o pedaço de pano que carregara com ele o dia inteiro, prendeu-o debaixo do braço e foi embora.



SAAVEDRA, C. "Reverso do jogo". In: RUFFATO, Luiz (Org.). Entre as quatro linhas - Contos sobre futebol. São Paulo, editora DSOP, 2013. 


*Carola Saavedra nasceu em Santiago do Chile, em 1973, e mudou-se para o Brasil aos três anos de idade. Também morou na Espanha, na França e na Alemanha, onde concluiu seu mestrado em Comunicação. Entre seus livros destacam-se Toda terça (2007), Flores azuis (vencedor do prêmio APCA de 2008), Paisagem com dromedário (2010) e o volume de contos Do lado de fora (2005). Atualmente, vive no Rio de Janeiro (RJ) e simpatiza com o Botafogo.











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