Era 1º
de maio de 1919, cerca de 60 mil pessoas reuniram-se na Praça Mauá, Rio de
Janeiro, para os protestos do dia do trabalho. Dez dias depois, começava o
primeiro campeonato internacional de futebol sediado no Brasil. A terceira
edição do Campeonato Sul-Americano, atual Copa América, teve como sede a cidade
do Rio de Janeiro. A primeira edição (1916) foi na Argentina e a segunda (1917)
no Uruguai. Prevista para o ano de 1918, essa edição teve a data alterada por
conta da epidemia de gripe espanhola que provocou estragos na capital federal e
em outras cidades brasileiras. Somente quatro seleções participaram desse
Sul-Americano de 1919: Argentina, Brasil, Chile e Uruguai. Todos os jogos foram
no estádio das Laranjeiras, na zonal sul de um Rio de Janeiro que avançava com
suas políticas de modernização excludente, materializada nas reformas urbanas
que expulsaram as camadas populares do centro da cidade.
Mas, afinal,
que Brasil era esse que abrigou a competição sul-americana na segunda década do
século XX?
Esse era o Brasil da República Velha, da República do
café-com-leite, do poder das oligarquias, do coronelismo, da concentração de
renda, da ausência de direitos trabalhistas, da brutal desigualdade social, do racismo estrutural, de camponeses e
operários superexplorados e oprimidos cotidianamente. É nesse contexto, de uma
república autoritária (estremecida por diversas revoltas populares), que o
futebol se populariza, para o desgosto dos clubes elitistas que imperavam na
época. Em meio às lutas populares, o futebol passa por um processo de
transformação e ganha outro significado quando praticado pelos grupos
oprimidos.
Em São
Paulo, palco da greve geral de 1917, equipes com forte presença de operários,
como Ypiranga e Corinthians, se destacam nos torneios que antes eram dominados
pelos clubes da elite paulistana. No Rio de Janeiro, um caso ocorrido ainda na
primeira década do século XX, mostra que a transformação do esporte era
irreversível. O Bangu Atlético Clube, fundado em 1904, não aceitou o
regulamento do campeonato carioca de 1907. Esse regulamento proibia a inscrição
de jogadores negros. Outros clubes do subúrbio, como São Cristóvão e Andaraí,
também foram representantes dessa resistência contra as imposições da elite
carioca que dominava federações e clubes de futebol. O recado estava dado: o
futebol não é propriedade privada das camadas privilegiadas da sociedade
brasileira.
A campanha
brasileira começa no dia 11 de Maio de 1919 com uma goleada sobre o Chile (6 x
0). Friedenreich marca três gols nessa partida de estreia e termina o
campeonato dividindo a artilharia com Neco, ambos com quatro gols. Em 18 de
Maio a seleção brasileira vence a Argentina por 3 a 1 e empata com o Uruguai no
dia 26 de maio (2 x 2). Como Brasil e Uruguai terminaram empatados em número de
pontos, foi necessário um jogo de desempate. A final foi acompanhada por um
grande público em trajes elegantes, dentro do estádio, e por um número
significativo de populares nos morros localizados nos bairros vizinhos.
Friedenreich marcou na prorrogação e garantiu o título pra seleção. ‘El Tigre’,
apelido que ganhou da imprensa uruguaia após a conquista de 1919, foi vítima de
uma atitude racista dois anos depois. Antes da convocação para a Copa América
de 1921, com sede em Buenos Aires (Argentina), o presidente da república,
Epitácio Pessoa, do Partido Republicano Mineiro, baixou um decreto que proibia
a presença de mestiços e negros na lista de convocados. O fracasso nessa
competição e a campanha popular pela volta de Friedenreich contribuíram para a
revogação do decreto.
O mestiço
Artur Friedenreich teve uma longa carreira antes do profissionalismo se consolidar no final da década de 1930. Sua importância na trajetória do futebol brasileiro foi definida assim nas palavras do escritor uruguaio Eduardo Galeano:
“Friedenreich fundou o modo brasileiro de jogar. (...) Levou ao solene estádio dos brancos a irreverência dos rapazes cor de café que se divertiam disputando uma bola de trapos nos subúrbios”.
Cem
anos depois, dificilmente vamos encontrar um ambiente de festa e espontaneidade nas assépticas "arquibancadas" das novas arenas. Com a conversão do torcedor em consumidor, não veremos as classes populares incentivando suas seleções e comemorando gols nessa Copa América. Esperamos, como prêmio de consolação, que a alegria do futebol daquele Friedenreich de 1919 esteja presente
nos gramados brasileiros de 2019.
*Citação: GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra.
Porto Alegre: ed. L&PM, 1995.
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