Está partida tinha absolutamente tudo. Até uma suspensão que deixou para os arquivos um dado quase inédito: os primeiros 70 minutos disputados sob ditadura e seu término concluído na democracia.
O Metropolitano de 1983 estava com idas e voltas, em sintonia com que ocorria na sociedade, que em pleno anos de chumbo respirava uma nova esperança que amanhecia com a reconquista da liberdade. Os incidentes se sucediam rodada após rodada, inclusive tendo que lamentar mortes em algumas oportunidades.
Ferro Carril Oeste, campeão argentino de 1982: Carlos Arregui, Gómez, Garré, Cúper, Rocchia y Basigalup. Saccardi, Juárez, Márcico, Cañete y Crocco.
A competição também se viu
atravessada por uma greve de jogadores do River por falta de pagamento, que
levou o clube de Nuñes a atuar sete rodadas com uma equipe com integrantes de
juvenis e amadores, donde fizeram sua estreia na primeira divisão Néstor
Gorosito, Alejandro Montenegro, Mariano Dalla Líbera e Adrían De Vicente, entre
outros.
Em meio a esse incessante
movimento, havia algo que manteria sua firmeza inalterada, e era Ferro Carril
Oeste. Desde a chegada de Carlos Griguol a direção técnica havia adotado um
estilo que se perpetuava em todos os torneios desde 1981. E nesse Metro de 1983
não era a exceção, já depois de poucas rodadas da competição tomou a
liderança e não largou mais. Estava no alto a tabela e com
3 pontos de vantagem sobre Independiente e San Lorenzo, recebeu o Racing na noite
de quinta, em 1 de dezembro.
O quadro de Avellaneda era sua
antítese. Sem rumo há muitos anos na área institucional, essa desordem se
refletia no setor desportivo. Em 1982 se havia salvado do descenso no final com
uma fraca campanha e agora se encontrava na mesma situação: na tabela dos promedios (média de pontos da temporada
atual, com os pontos obtidos nas duas últimas temporadas definem os times
rebaixados) só superava Temperley e Nueva Chicago.
Ferro fez prevalecer desde o
início as diferenças de rendimento que havia entre ambos, a partir de sua
habitual pressão em todo campo e o bom manejo que Cañete-Márcico-Oscar Acosta
desenvolviam. Racing contraporia com redução dos espaços e tratar de buscar a
cabeça salvadora do veterano Víctor Marchetti. Assim se foi o primeiro tempo,
entre as intenções de bom jogo, mas sem profundidade de um e com a cautela de
outro.
O Racing parecia satisfeito com o
empate para suas opacas intenções de evitar o fantasma do rebaixamento. Para o
complemento não só não mudou sua postura ofensiva, como deixou isolados na
frente Rizzi e Marchetti contra a defesa adversária. Aos 60 minutos, quando o
Ferro começava a ganhar com mais perigo, chegou um dos momentos chaves daquela
noite: o árbitro Ricardo Calabria mostrou cartão vermelho para Alberto Márcio, jogador do Ferro que supostamente teria ofendido a arbitragem. A tribuna local, até então pacífica, se
enfureceu com a falha do juiz. Logo depois a abertura do placar, aos 70, Carlos Arregui de
pé direito definindo com categoria por sobre o corpo de Carlos Rodríguez.
Esse 1-0 acalmou os ânimos dos
torcedores locais, que continuaram cantando contra o trio de arbitragem, e aos
75 aconteceu o pior: uma pilha atacada pela plateia que dava para a Avenida
Avellaneda acertou o auxiliar Orville Aragno, produzindo um corte no pescoço.
Imediatamente o jogo parou e ao constatar o estado do juiz de linha por parte
dos médicos, se pediu a suspensão da partida.
Mas não era um fato isolado. O
futebol argentino retomava suas atividades nessa quinta, depois de uma semana
sem partidas, porque os árbitros haviam decretada uma greve pelas constantes
agressões que haviam sofrido. A interrogação era saber o que fariam ante uma nova
e grave situação. Na sexta, 2, foi marcada de febris reuniões com dois claros
epicentros: a Associação de Futebol Argentino e a Associação Argentina de
Árbitros, se reuniram e suspenderam o campo do Ferro, os juízes numa assembleia
decidiram continuar a jogar a partida na rodada seguinte, que estava prevista
para 48 horas depois.
A partida entre Ferro e Racing
ficou suspensa, ao mesmo tempo nessa mesma noite Independiente venceu como
local o Estudiantes 2-1 e o San Lorenzo igualo em um tento no seu campo ante o Nueva Chicago, deixando as posições: Ferro 40, Independiente 39 e San Lorenzo
38. Para o que importava para a Academia,
Temperley havia resgatado um valioso ponto em Córdoba (1-1 contra o Instituto),
deixando Racing com 27,00 de promedio,
Chicago com 26,50 e os Celestes com
26,00.
No domingo se disputou a 34º e a
grande surpresa foi a derrota do Ferro ante o Platense por 2-0, enquanto
Independiente chegava a liderança e San Lorenzo caia frente ao Vélez. Já a via
crúcis do Racing não parava: 1-3 ante Huracán em Parque Patricios.
Na quarta, 7, o Tribunal de
disciplina chegou a um veredito e determinou a continuação dos 15 minutos
restantes, que seriam jogados no campo do Atlanta dia 13, dividindo em tempos de
7 e 8 minutos respectivamente. Por esse motivo, a rodada do dia 14 seria
transferida para o dia 15. Uma verdadeira loucura de dias e partidas.
Entre a saída da sentença e o
reinício da partida, foram jogadas duas rodadas e um feito de muita comoção: no
sábado, 10, Raúl Alfonsín assumiu como presidente democrático, deixando para
trás sete anos e meio de uma sangrenta ditadura. Novos ares soprando no céu
argentino.
E chegou o dia da continuação da
partida. A expectativa foi imensa e por esse motivo estádio da Villa Crespo
estava praticamente lotado, pesando ser um dia de trabalho às seis da tarde. As
principais rádios mudaram sua programação para a transmissão desses 15 minutos.
Depois dessa continuação
restariam somente três rodadas para o final do torneio. Nas formações se
puderam notar com claridade o objetivo de um e de outro. Ferro teria que sair
de campo com 10 jogadores por conta da expulsão de Márcico e por isso veio a
campo com um 4-3-1-1. Racing, decidido a jogar tudo, entrou com uma tática
ofensiva, com 3 defensores, 3 no meio e 4 atacantes.
A partir dessa pretendida vocação
de ir ao ataque, la Academia se
plantou no campo do rival, com uma maior posse de bola, mas sem profundidade.
Caldeiro produziu a primeira emoção da calorosa tarde quando ingressou a área e
Rocchia lhe sacou um balão, no choque reclamou pênalti. Foi o único lance da
primeira minietapa. Na segunda,
Racing seguiu tentando, se expondo ao suicídio que Ferro poderia gerar. Silvio
Sotelo se livrou de De Andrade e habilitou Acosta, que foi sozinho e na saída
do arqueiro Rodríguez, num arremate apurado, mas alto, por sobre o travessão.
A partida acabava. Ferro
conseguia o seu objetivo de manter o triunfo e empatar na liderança com o Independiente,
mas uma jogada inesperada aconteceu no minuto final. Félix Orte recebeu na
esquerda como ponteiro, partiu para dentro onde encontrou Marchetti na marca do
penal onde arrematou. Por ali se infiltrava Caldeiro, que quase na linha de
fundo empurrou para dentro do gol de Basigalup, decretando a loucura nas
tribunas populares celeste e branco. Racing, sofrendo até o último instante,
resgatava um ponto que parecia perdido e se montava na ilusão de se salvar,
enquanto o Ferro lamentava o ponto que lhe poderia render a glória.
Não havia tempo para festejos e
lamentos, pois 48 horas mais tarde deveriam afrontar seus respectivos jogos de
uma nova jornada de uma campeonato que seguia ardendo encima como embaixo.
Ferro viajou a Rosário para enfrentar o Central e perdeu. Terminou em terceiro,
a dois pontos do Independiente.
A equipe do Racing recebeu o Unión
em seu estádio e estava confiante. Em um enfrentamento parelho, aos 86 minutos
Caldeiro fez 2-1 enlouquecendo os presentes. Porém, dois minutos mais tarde veio o
empate. As chances de seguir na Primeira se haviam acabado com a sentença que chegou
no mítico estádio de Avellaneda. O 18 de dezembro daquele ano foi o dia mais triste na
gloriosa história da la Academia, ao
perder de 4-3 ante seu homônimo de
Córdoba e cair para a Primeira B.
Texto adaptado do livro "Inolvidables partidos olvidados", de Eduardo Bolaños, editora Emecé, 2017.
Veja os gols da partida:
Nenhum comentário:
Postar um comentário